quarta-feira, 2 de junho de 2010

Elogio da mulher

(sobre música "Mulher" de Neguinho da Beija-Flor)

Compor uma canção é um estratagema, dizia um músico. Eu não faço a menor idéia. Mas também não nego se tratar duma idéia interessante; se não pra ajudar a entender a composição, pelo menos um devaneio interessante, um ponto de vista.

Neste sentido a música “Mulher”, do sambista Neguinho da Beija-Flor, nos aparece como um exemplo cristalino de enlace perfeito entre as partes que a compõem. Pode-se até supor que o compositor guarda um “mapa” da obra, num rascunho o “esquema” da canção.

A repetição da palavra ‘mulher’, primeiramente, em três combinações diferentes, o tempo que varia, e a melodia que não é de pouca qualidade, introduzem o ouvinte no, digamos, todo da música. O terceiro tempo quebra dando início ao segundo momento da abertura, e o que nos aguarda:

“Melhor que uma mulher só dez “mulher”, só dez “mulher”

Melhor que dez “mulher” só mil “mulher”, só mil “mulher””

Pois é, até o momento não muito foi dito. Uma repetição trivial seguida de uma comparação que parece no mínimo imbecil (“duas mulher” não são melhores do que uma, ou três, ou nove? E mil mulheres tranqüilo, mil e uma é que fode, né?): O que um estrategista nos diria?

Não quero saber de imaginação pela metade. Um antigo general do exército chinês certa vez proverbiou: conhece o teu inimigo. A insinuação é sutil. O tema já está claro a esta pouca altura da música; vamos falar de mulher. Melhor que uma mulher, só dez “mulher”. Não dez mulheres, dez “mulher”. A individualidade da mulher é apreciada, não importa que seja uma, dez, ou mil; como a nos contar que cada qual vale por si mesma. Mas ele, autor, faz isso por artifícios.

A terceira parte não difere no que tange a simplicidade das estruturas. Uma contagem,

“Uma mulher, duas mulher, tr... ... sete mulher oito mulher nove mulher – dez mulher”

Agora tem fim o primeiro ato, em sua tripartição narrativa, apesar da abordagem incomum do tema. O segundo ato se inicia como o primeiro (“mulher, mulher...”), numa autofagia incrível, onde a música repete a si mesma, onde o mecanismo da repetição enquanto criador de significados foi explorado o quanto possível pelo compositor. A repetição se repetir, é um golpe de mestre!

“Ah, mas assim é muito fácil, só ficar repetindo mulher, então”. Vejamos; o quão explícita é a repetição, quão explícitas são as estruturas pelas quais se movem? Até porque, não esqueçamos que estamos falando de um samba, não uma daquelas repetições malucas e modernas (ou pós-?). Um samba, uma expressão musical que tem ampla divulgação no país. Não está isolada a obra. Um samba harmonioso é o encarregado de dar suporte à letra que se mostra simples, mas reveladora. Não bastou repetir a palavra ‘mulher’ para se falar tão sintetica e profundamente no tema mulher. Ousaria dizer que os dois êxitos da música se confundem (se não são o mesmo).

E o que há por dizer sobre elas?, como dizer no breve espaço de uma obra (qualquer que seja), como reduzir a mulher a tão pouco? O autor joga a bandeira, mas é uma desistência tão mais carregada de significado que muita resistência que poderia opor. Talvez sabendo, simplesmente, que não encerraria as mulheres a o que quer que fosse. Revela, por fim, a música, algo que não se trata de linguagem, não se trata de arte, nem arte contemporânea. Não se trata nem mesmo de mulher. Trata-se de mulheres, trata-se de homens, trata-se de suas vidas e de como eles encaram este imenso

2 comentários:

Unknown disse...

"— A verdade é que ali não tem letra. É uma porcaria. Eu repito a palavra mulher 192 vezes. Nunca imaginei que esta música seria sucesso"

neguinho da beija-flor



A versão original é um funk, Santiago.

Eu adoraria que os fatos falassem por si, mas sei que sua mente instigada e revolucionária clama por debates. Que clame mais! Acho isso tudo uma instrumentalização cínica da razão e me recuso a corroborar com isso. Leviano como distinguir arte e política e, no entanto, validado (e até incentivado) por um discurso lógico qualquer - precipitado e frívolo, sob a égide da ubíqua e despótica Ciência. Não me entenda mal, San. Eu lhes apresentei essa música, a mantenho em meus favoritos, não sou a favor da censura ou algo do tipo, sou contra a atribuição de determinados signos a certas ações/expressões.

Unknown disse...

mas se o conteúdo político de uma "mensagem" está relacionado à interpretação que se tem dele, uma interpretação diferente da sua pode sim veicular valores, que pelo menos eu considero, positivos, e isso justifica a sua divulgação, que vc tinha repreendido outro dia. Não?