sábado, 27 de março de 2010

O poeta como vigário

o poema disfarça
        na sutil fragilidade dos versos
a culpa desistida
        a morte assistida nos braços do vento;
o poeta verdadeiro
        (feliz ou infeliz destino?)
vê morrer na praia
        seu último intento:
                sua poesia mesma.

por ela ele reza seus versos.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Menina

Essas pequenas coisas...
Todas congeladas no tempo.
Mais parecem romance de quinta
do que memórias de vida,
e mesmo assim estão lá.
Meio enevoadas, esquecidas,
mas presentes.
Feito pinguim de geladeira.

Se são verdadeiras ignoro.
Mas que importa?
Apenas sei que descendo uma escada,
Os cabelos compridos na cara,
meu olhar encontrou o dela.
Um recreio escolar, veja você.

Ali não poderia afirmar nada.
Mesmo hoje não posso!
Mas aquele olhar,
aquela escada,
aquela menina,
isso ficou.
Essas pequenas coisas...

Confesso que não me lembro
de nossas primeiras conversas,
de nossas investidas dispersas,
dos sims, dos nãos, dos ais...
Peças da memória.
Mas já aquele primeiro olhar,
magnetismo animal,
além do bem ou do mal,
Puro.
Ele ficou.

Há mais pinguins na geladeira dessa história.
Um beijo aguardado e apressado,
um gemido encostado num carro,
um terraço e um baseado.

As maneiras todas que nos amamos
nos desejamos
nos consolamos do cinza da vida,
essa ferida, e finalmente
do cigarro pós-coito
dos sentidos relaxados
e daquele velho olhar renovado.

Essas pequenas coisas...



Procissão

[exercício]


A gente caminhava com vagar rua acima, velas em punho, a canção a embalar os passos, como se nem movimento houvesse. Não se moviam, em verdade: era a rua que os atravessava, consumindo a chama e o tempo de cada um. Algo como um balançar de navio, no ritmo que os pés descalços marcavam na poeira. No mais era a noite que se anunciava por detrás das colinas.
[Narrativa acompanhando]

Viam-se apenas fagulhas, velas em combustão cortando a tarde. A noite logo viria, e com ela as estrelas, como a tomar parte na procissão. Cada pessoa era uma estrela. Cada estrela, uma pessoa. Assim, ambas as marchas seguiam seus cursos: saberiam da existência uma da outra? A coincidência era tanta...
[Narrativa panorâmica]

À frente da procissão senhoras vestiam luto. Sobreviventes, como a própria marcha que compunham. Velas empenhadas em suas orações, os passos lentos, mas tão rápidos quanto lhes permitia a idade. A poeira levantada insinuava, apenas, o que de misterioso havia. Homens, mulheres, crianças vinham em seguida; capaz que todos compartilhassem da mesma incompreensão, por mais que a solidão frustrasse no gérmen qualquer tentativa de encontro. A noite banhava de melancolia igualmente a todos quando a procissão passou.
[Narrativa estática]

Senhoras trajavam preto, dos pés à cabeça. Às velas que empunhavam cabia iluminar o que o sol lentamente se recusava a fazê-lo. Meninos, mulheres, homens. No tempo da procissão, quase tudo pouco valia. Quase nada. Uma chama a percorrer um fio: uma vela, uma marcha, uma vida? Quase tudo. Já noite, o andar assumia o tom da noite. E o canto que ritmava os passos e enchia de poeira a rua perdia-se num céu tão estrelado, a vibrar, vibrar, vibrar...
[Narrativa em flashes]

Na pequena estrada de terra que separava em dois o capinzal tomava forma a procissão. Senhoras de tristes feições abriam caminho, seguidas pelos demais. Muitos empunhavam velas, que com o encaminhar da marcha se faziam mais e mais visíveis sob o céu negro e estrelado do campo. As canções, ora melodiosas, ora recitadas, marcavam o ritmo a ser seguido. Os pés no chão levantavam a poeira na qual estavam envoltos: visibilidade dando lugar ao mistério crescente.
[Descrição objetiva]

Que havia de diferente, não se poderia dizer. Mas nenhum dos presentes negava àquela procissão o seu devido respeito de coisa incompreendida. Talvez o sol poente, as primeiras estrelas do céu. Que fossem as canções que as mais senhoras puxavam do fundo das já tão surradas gargantas... Seja talvez esta a pista: o respeito, o grave e silencioso respeito que toda gente prestava, um encontro de alma e mundo. O entendimento dispensando razões.
[Descrição subjetiva]

O sol se punha preguiçosamente. Iluminara e aquecera todo um dia, mais que seu direito o repouso que a noite traz. Não aquela gente, marchando em procissão, vagarosa, pé ante pé, ao som dos cantos que as mais senhorinhas empenhavam. Eram palavras doces e ríspidas, envolventes como um riacho, caudalosas qual torrente. O rio dos homens seguia seu fluxo, em meio à noite e à escuridão. Em breve as velas se apagariam. Restar-lhes-ia apenas o escuro, e cada um a si mesmo.
[Descrição mais subjetiva]

Prostituição Infantil

necessidade
cidade
idade

Poema encontrado no ônibus - ou Market Place

Salsa, cebolinha
        3 cenouras
           1 farinha
2 kilos
         ou 2 e 1/2 ?
2 de arroz branco
1 brócolis
1 feijão branco

alho
1 pimentão
1 pimentão e
2 cebolas

- azeitona preta

bacon
             ( p/ Sofia)
1 tablete
       de margarina

       e sobremesa:
- gelatina colorida.

terça-feira, 23 de março de 2010

Fragmentos de Aldeia

pés calejados e a barriga coça
mosquito!
é tinta, é pinta, é roça
(as montanhas engolem o sol sem dó nem piedade)
mas o dia não gira
dança, o dia, na roça
ou o balanço da rede engana meus olhos?
e quando cai a noite
estrelinhas mil
erguem dos ombros da terra
um firmamento, e nele
um rio
silencioso corre
- os seixos cadentes são espetáculo à parte

terça-feira, 2 de março de 2010

Desimportâncias Essenciais

Besouro rola-bosta,
mesa posta,
mananciais.
vagalume andarilho - pequeno fogo-fátuo
pedras sussurrantes
promessa de amor descumprida.
momentos a que pertenço.

E bradam os sábios:
bastam cem anos,
cem anos!
para que se vejam
impérios surgirem e ruírem,
para ser excomungado
ou extraditado,
para criar fortuna, desafetos ou gado.
Bastam cem anos
para colher lágrimas de tordo,
cem anos pra capturar um leprechaun
ou conquistar uma ninfa.

Mas e eu,
pequeno que sou,
ínfimo,
tímido,
sem 12 trabalhos pra realizar
ou países pra conquistar
ou cem anos pra viver...
que faço de mim?

Minhas desimportantes desventuras carecem de glamour.