sábado, 22 de janeiro de 2011

Umbigo


Quando tudo, tudo mesmo
mesmo a lua, mesmo o céu
e as estrelas
Quando tudo, tudo mesmo
é tão só, tão simples
mera combinação de possíveis
Resta à alma derradeira, ele
o único
remanescente
transcendental mistério da natureza:

o umbigo.

Quanto não há de saudade
em tudo quanto lhe falta?
Quanto de sua ausência
não nos consome (ou alimenta)?
Pois umbigo, o que é
em sua essência
senão de nós o que sentimos falta...

Restará ao umbigo alternativa possível
que não vislumbrar
extremos inatingíveis?

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Santo Dios



Paulinho acordou cedíssimo no domingo. Não queria perder uma luta! No auge de seus onze aninhos, já sabia qual seu lutador favorito: é Antonietto. Ao pai, divertiam tanto as tardes que passavam juntos... Com o tempo até se esqueceu daquele princípio de remorso, uma culpa indecisa, que o acometia logo que liberaram as lutas de gladiadores. Lembrava a indiferença com que acompanhou tão polêmico projeto, fonte de animosidade no nosso congresso.

Nos tempos de escola, Rômulo, pai de Paulinho, ouvira falar algo a respeito dos gladiadores, certamente. O que, no entanto... Não sabia quem eram aqueles homens que se dispunham a arriscar a vida na arena, enfrentando feras e outros lutadores. Já os de então eram voluntários, e por isso concordava com as lutas. Contava ao filho, “esses homens bravos escolheram lutar, meu filho, olha como são corajosos!”. Aí os olhos de Paulinho brilhavam.

O estádio, onde há pouco disputava-se futebol, apenas, e vez ou outra abrigava algum show, agora, todo mês sediava o evento. As filas eram imensas, pois só na hora se podia comprar ingressos, e tal era a fama conquistada, os preços nas mãos dos cambistas iam às alturas. Ainda mais estando entre os lutadores Antonietto.

Antonietto tornara-se lutador por vontade própria. O que não contam de sua história é que o alistamento voluntário substituía os seus 28 anos de pena restantes. Disse certa feita, “arriscar a vida na arena ou na prisão, prefiro a arena; é mais humano”. Ele liderava uma quadrilha de seqüestradores que atuava na zona norte do estado do Rio. Mas ao entrar para os torneios, o crime que o levou à prisão tornava-se informação confidencial. Esse dispositivo criava, na prática, uma segunda chance para muita gente. Fazia com que estupradores, assassinos, renascessem aos olhos do público, muitas vezes fazendo o mesmo que antes, agora, porém, como heróis. Ainda por cima, e principalmente, fazia com que Paulinho os visse como via. Via neles bravura. E de fato eram bravos homens.

As lutas começavam por volta das 9 horas, mas uma hora antes já estavam pai e filho na fila dos ingressos. Compraram lugares na cadeira especial, onde a vista era especialmente sanguinolenta. Eram nove e trinta da manhã quando adentraram a arena vinte e oito mulheres divididas em dois grupos, um vermelho e um azul. Diferenciavam-se pelas cores de suas saias e camisetas sem manga. Era essa, aliás, a vestimenta para os combates femininos. Para tal utilizavam desde porretes, facas e correntes, a um salto-alto, que o senso de humor de algum dos organizadores resolveu utilizar.

Com que ferocidade combatiam!, via-se nos olhos de Paulinho. Ao pai, encantava-o especialmente as brigas entre mulheres, pois que a certa altura suas roupas se desfaziam em meio à violência dos golpes, e ele sentia libertar o que de mais primitivo guardava. Ocorreria o mesmo a todos?

Romulo desconhecia, mas os romanos bem sabiam a importância das lutas. Meio pelo qual se extravasava toda a pulsão e agressividade inatas, estas, por incrível que pareça, acalmavam ânimos, aguçavam a sensibilidade. Punham o homem em contato com o que havia perdido, o que há de violento e implacável, e por isso mesmo o mantinham sob controle. Algo como as tragédias em que se encenavam situações limite, o homem em contato com o divino e com o trivial; tanto deuses quanto a morte incorporavam-se às tragédias. Como Paulinho, que de tantas mortes via nascer um herói.

Após o intervalo, quando se retomadas as lutas, enfim lutaria Antonietto. Dois cachorros-quentes e um refri em punhos, tudo pronto para o grande duelo. Antes, entretanto, combates de menores proporções distraíam a platéia. Anões lutavam entre si, como ocorria no longínquo império romano, anões! E com que coragem não golpeavam com seus bracinhos. Os espectadores não sabiam bem ao certo se riam, choravam, se torciam, ou que fazer. Era como uma paisagem de Salvador Dalí, ver aqueles homenzinhos empunhando armas que às vezes os superavam em comprimento.

Os ânimos contraem-se novamente. Findo o duelo dos anões, o time vermelho, vindo do estado de Alagoas para esta luta, vencera. Perdera, porém, três combatentes, apunhalados, e um quarto, estatelado num canto, incapaz de se mover. Os integrantes do time azul espalhavam-se pela arena, muitos mortos, muitos outros feridos.

Quando surgiu a idéia de se realizarem novamente eventos deste gênero, como muitas das regras originais ou perderam-se ou tinham de ser adaptadas à nova realidade, a solução encontrada fora importá-las dos torneios de Vale-Tudo. Como esta que previa a interferência de um juiz, caso um dos times se mostrasse incapaz de combater. Este decretou o fim da partida. Os corpos foram retirados e os feridos socorridos. Estivessem em Roma, o público pediria a cabeça dos vencidos: o imperador ou autoridade presente decidiria o futuro dos derrotados. No entanto, não havia mais execuções sumárias. Digo, os feridos ainda viveriam.

Paulinho não sabia bem o que moral significava. Tampouco tinha idéia do quanto se havia debatido antes que as autoridades liberassem os torneios. O que ele queria era ver Antonietto derrotar sozinho dez combatentes. Ver os golpes de espada, o sangue jorrar, a adrenalina correr em suas veias... minto, Paulinho também desconhecia a adrenalina.

Pai e filho, como aquela multidão ali presente, de um dia para o outro abriram mão de valores antiqüíssimos. A igreja decerto recusava-se a aceitar tais lutas. Dizia ser a banalização do pecado, da morte, e da mentira. Algo parecido disse Constantino, o imperador romano, ao proibir as mortes humanas nos jogos dos anfiteatros. Nada, pois, menos humano! Essa tentativa de consolidar valores sociais estava ultrapassada, ou ao menos alguns de seus meios. Os idealizadores do retorno dos jogos de gladiadores retiraram de sua nova versão qualquer possibilidade de inclusão de animais, como o faziam em tempos passados. Aí sim, uma atitude correta. Os animais não raciocinam, por isso não podem fazer tal escolha, calculando as conseqüências de participar de um evento como este. Já o homem pode.

E era um homem assim, um cidadão que se candidatara livre e espontaneamente a participar dos combates, que enfrentaria Antonietto. Luciano era seu nome. Vindo de uma muy recente carreira nos estádios do interior, era sua primeira luta na capital do estado. Empresário, optou pela carreira de lutador após ver falir sua academia. De suas lutas anteriores herdou a alcunha de “matador”. Manejou, anteriormente, espadas e punhais, mas brigava bem com porretes e de mãos limpas. Trazia também uma marca, esta física, do recente estilo de vida. Em seu último desafio perdeu o dedo anelar da mão esquerda. Não se queixava, no entanto; dizia, “não pretendia casar mesmo...”.

O combate foi bem planejado. Antonietto adentrou a arena pelo lado oeste, logo abaixo de onde observavam Paulinho e Romulo, levando a multidão ao delírio. Junto a ele outros seis homens, portavam todos bastões de ferro. Do lado oposto, Luciano mais seis repetiam o que se viu há pouco. O público ensandecia.

Observavam-se certos redutos de torcedores mais esclarecidos, que mantinham uma torcida minimamente organizada. Com isto, o que quero dizer é que, no geral, a preferência do público era tão etérea que com freqüência os torcedores mudavam o objeto de sua torcida; num momento saudavam um, no outro já berravam o nome de seu adversário. Paulinho não. Não abria mão de Antonietto. Lera no jornal as notícias de suas vitórias, mesmo nunca o tendo visto pessoalmente, pois que não era permitido televisionar os combates.

Agora ele via, de longe, é certo, mas ainda assim; via o rosto de seu herói pela primeira vez. Era alto e forte, como supunha. Mas as cicatrizes nas costas o surpreenderam. Luciano também chamou sua atenção, no comando do time azul. Parecia tão pacato sujeito, que estaria fazendo ali?

Qual não foi seu espanto ao ver mudarem as fisionomias dos lutadores. Tendo início a batalha, ambos tornaram-se em feras, e o menino não conseguia tirar os olhos dos dois principais. Com que brutalidade e elegância não aplicavam golpes na face dos oponentes. Com que leveza não se esquivavam, e como não comover com os gritos que davam quando atingidos...

A princípio, Antonietto e Luciano não se enfrentaram. E não tiveram dificuldade ao injuriar os outros lutadores. Antonietto, em um deles, desferiu tão potente golpe, que o rapaz, aparentava ter uns 25 anos, desmaiou no momento. Teria visto o que o atingiu?

Logo a briga mais aguardada tinha vez. Entreolharam-se, os dois. Os quatro, Paulinho e o pai também esperavam ansiosos.

Encaravam-se, os lutadores. Cada qual empunhava um bastão. Luciano tentou o primeiro golpe, que Antonietto desviou com um ágil movimento. Revidou com uma porretada nas costelas, que o oponente sentiu, via-se em seus olhos. Ele novamente arriscou um golpe, acertando desta vez as pernas de Antonietto, que caiu no chão.

Paulinho sentiu sua dor.

Vendo caído o adversário, Luciano armou um pulo, e caiu de paulada por sobre ele. Seu rosto sangrava tanto, de dar dó... E após tantos golpes e murros, Antonietto não conseguia se levantar. O coração do menino, nesse momento, era o mesmo que o do homem, caído, sofrido.

Luciano então, aproxima-se dele, ergue seu bastão, e com que tranqüilidade atinge em cheio o rosto de Antonietto. Ninguém duvidava de que desmaiaria, não sofresse lesões mais sérias.

Romulo olhou para o filho nesse instante. Temia a decepção do menino, ao ver definhar o seu ídolo. O garoto, ao encontrar os olhos do pai, este apreensivo, solta um grito que, via-se, vinha do fundo da garganta: “Vai Luciano! Acaba com ele”.

O pai respirou aliviado. Por pouco não ia por água a baixo o programa dominical deles. Por pouco. Mas no saldo, pensou o pai, foi um bom domingo. Os olhos de Paulinho atestavam o mesmo.

De fato, fora um bom domingo

A porta foi ultrapassada


mas por que temo,

se dei a eles

o mapa

e a chave?


Talvez achasse,

antes fosse cedo,

Não sei o que!?


Achar o que?

Que achava?


Procuro:


A cura do medo


medo de que?


Desses olhos grandes

esses olhos gigantes

que me observam no mais íntimo.


mas por que temo

se dei a eles

o mapa e a chave?


Chave de que?


Chave de mim;


Chave que nem conhecia.


Se vivi trancado,

enclausurado;


fugindo de que?

Desses olhos grandes

que me acompanham

onde não há ninguém mais.


...envergonhado


de que?,

se vivi trancado

a me esconder?