quinta-feira, 25 de março de 2010

Procissão

[exercício]


A gente caminhava com vagar rua acima, velas em punho, a canção a embalar os passos, como se nem movimento houvesse. Não se moviam, em verdade: era a rua que os atravessava, consumindo a chama e o tempo de cada um. Algo como um balançar de navio, no ritmo que os pés descalços marcavam na poeira. No mais era a noite que se anunciava por detrás das colinas.
[Narrativa acompanhando]

Viam-se apenas fagulhas, velas em combustão cortando a tarde. A noite logo viria, e com ela as estrelas, como a tomar parte na procissão. Cada pessoa era uma estrela. Cada estrela, uma pessoa. Assim, ambas as marchas seguiam seus cursos: saberiam da existência uma da outra? A coincidência era tanta...
[Narrativa panorâmica]

À frente da procissão senhoras vestiam luto. Sobreviventes, como a própria marcha que compunham. Velas empenhadas em suas orações, os passos lentos, mas tão rápidos quanto lhes permitia a idade. A poeira levantada insinuava, apenas, o que de misterioso havia. Homens, mulheres, crianças vinham em seguida; capaz que todos compartilhassem da mesma incompreensão, por mais que a solidão frustrasse no gérmen qualquer tentativa de encontro. A noite banhava de melancolia igualmente a todos quando a procissão passou.
[Narrativa estática]

Senhoras trajavam preto, dos pés à cabeça. Às velas que empunhavam cabia iluminar o que o sol lentamente se recusava a fazê-lo. Meninos, mulheres, homens. No tempo da procissão, quase tudo pouco valia. Quase nada. Uma chama a percorrer um fio: uma vela, uma marcha, uma vida? Quase tudo. Já noite, o andar assumia o tom da noite. E o canto que ritmava os passos e enchia de poeira a rua perdia-se num céu tão estrelado, a vibrar, vibrar, vibrar...
[Narrativa em flashes]

Na pequena estrada de terra que separava em dois o capinzal tomava forma a procissão. Senhoras de tristes feições abriam caminho, seguidas pelos demais. Muitos empunhavam velas, que com o encaminhar da marcha se faziam mais e mais visíveis sob o céu negro e estrelado do campo. As canções, ora melodiosas, ora recitadas, marcavam o ritmo a ser seguido. Os pés no chão levantavam a poeira na qual estavam envoltos: visibilidade dando lugar ao mistério crescente.
[Descrição objetiva]

Que havia de diferente, não se poderia dizer. Mas nenhum dos presentes negava àquela procissão o seu devido respeito de coisa incompreendida. Talvez o sol poente, as primeiras estrelas do céu. Que fossem as canções que as mais senhoras puxavam do fundo das já tão surradas gargantas... Seja talvez esta a pista: o respeito, o grave e silencioso respeito que toda gente prestava, um encontro de alma e mundo. O entendimento dispensando razões.
[Descrição subjetiva]

O sol se punha preguiçosamente. Iluminara e aquecera todo um dia, mais que seu direito o repouso que a noite traz. Não aquela gente, marchando em procissão, vagarosa, pé ante pé, ao som dos cantos que as mais senhorinhas empenhavam. Eram palavras doces e ríspidas, envolventes como um riacho, caudalosas qual torrente. O rio dos homens seguia seu fluxo, em meio à noite e à escuridão. Em breve as velas se apagariam. Restar-lhes-ia apenas o escuro, e cada um a si mesmo.
[Descrição mais subjetiva]

Nenhum comentário: